Meu amigo Karl Marx

Matéria publicada no Jornal El País (Espanha) em 02 de setembro 2015, por Luiz Ruffato

C. possuía uma ampla casa na Vila Teresa, bairro onde habitou a minha infância, em Cataguases. Baixo, mais para gordo que para magro, calvo, tratava com impaciência a vizinhança, que considerava um bando de ignorantes. Irritadiço, percorria mau humorado as ruas irregulares de paralelepípedos em cima de sua lambreta azul e branco. No entanto, apesar de pouco simpático, nutria veleidades políticas: aspirava sentar-se numa das cadeiras da Câmara dos Vereadores da cidade. Mas, em plena ditadura militar, convivia com um fantasma, que o atormentava dia e noite.


No passado, entusiasmado com a pregação de um mundo melhor, alicerçado em justiça, liberdade e igualdade social, C. colocara-se à disposição do Partido Comunista. Ao casar-se, convenceu a mulher, L., a colocar o nome do filho de Karl Marx, singela homenagem àquele que, acreditava, mudara os rumos da história da humanidade. Karl Marx mal teve tempo de respirar ares democráticos: nascido em 1960, quatro anos depois os militares davam um golpe de estado instalando um regime de força que se arrastaria por vinte longos e tenebrosos anos.


Tempos difíceis para todos, mais ainda para quem morava em um município pequeno, cujos olhos e ouvidos encontravam-se a serviço da repressão comandada por um delegado de polícia que gostava pessoalmente de torturar os presos. Perseguido, C. andou frequentando a Cadeia Pública, o que o assustou a ponto de, quando nasceu a filha, ter resistido à tentação de chamá-la de Rosa, em homenagem a Rosa de Luxemburgo, ou Clara, em homenagem a Clara Zetkin, ambas importantes lideranças femininas comunistas. Batizaram-na de Karla – apenas o “K” revelava resquícios de sua teimosia.


No dia 13 de dezembro de 1968, C. ouviu empalidecido o locutor da Rádio Tupi noticiar o fechamento do Congresso e o recrudescimento do regime. Açoitado pelos ventos desfavoráveis, C. emudeceu: caminhava de cabeça baixa evitando as pessoas na calçada, pois desejava tornar-se invisível. A mulher, novamente grávida, ansiava por sossego para criar os filhos, enquanto o marido, encerrado nos fundos da casa, em sua oficina de conserto de aparelhos elétricos e eletrônicos, matutava. Tinha que arrumar uma maneira de convencer a vizinhança que deixara de ser um elemento pernicioso à sociedade.


Quando nasceu o menino, forte e saudável, no começo de 1968, Cicinho havia solucionado o problema. Saiu do hospital, logo após avistar o filho e a mulher, e dirigiu-se ao cartório de registro civil. Lá, fez questão de silabar o nome do caçula, pois não queria nenhuma letra fora do lugar:

Robert Kennedy, homenagem ao senador e pré-candidato à Presidência dos Estados Unidos, brutalmente assassinado em junho do ano anterior.


Karl Marx fora um arroubo juvenil; Robert Kennedy representava o futuro.


Durante os quatro anos de ensino primário, Karl Marx foi meu colega de carteira, sentávamos em dupla, nas salas do Grupo Escolar Flávia Dutra. Tornamo-nos amigos, pois gostávamos das mesmas coisas: correr, jogar botão, andar de carrinho de rolemã, subir em árvore, deitar no chão do campinho de terra para observar as nuvens que avançavam rumo ao sul. A única coisa que nos separava era o futebol: eu ocupava o posto de lateral-esquerdo do time do bairro, enquanto meu amigo não lembravam dele nem para o banco de reservas.


Poucos sabiam que por trás do nome singelo e puro com que conhecíamos Carlinhos – apelido sustentado por todos, principalmente por seu pai e por sua mãe – erguia-se a sombra do perigosíssimo Karl Marx. Por isso, seus problemas só surgiram na adolescência. Quando foi inscrever-se no tiro de guerra, o sargento, horrorizado, exigiu a troca do nome. Vivíamos os estertores da ditadura, mas até mesmo o pai concordava que talvez fosse melhor abdicar da homenagem: Karl Marx virou Carlos Marcos. Seu irmão, alguns anos depois, já em pleno processo de democratização, não sofreu a mesma contrariedade: manteve, ao longo da vida, o nome de Robert Kennedy. E C., frustrado, nunca ganhou uma vaga na Câmara de Vereadores. Sua mulher, L., é que foi eleita e reeleita em diversas legislaturas.


Fonte: Jornal El País (Espanha) de 02 de setembro de 2015 por Luiz Ruffato


PS: Wilson Valverde citado pelo autor por C. de seu apelido Cicinho, exerceu mandato de vereador de 1972 a 1976 e sua esposa

L. Lídia Pereira Valverde exerceu o mandador de vereadora de 1977 a 1982.


"Karl Marx foi um filósofo, sociólogo, economista, jornalista e teórico político alemão. Junto a Friedrich Engels, elaborou uma teoria política que embasou o chamado socialismo científico. Suas contribuições para a Filosofia Contemporânea incluem, além da análise social e econômica, um novo conceito de dialética, baseado na produção material da humanidade."

Veja mais sobre "Karl Marx" em: https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/karl-marx.htm


"Rosa Luxemburgo foi uma filósofa e militante comunista e feminista polonesa. Suas contribuições intelectuais incluem análises críticas sobre o pensamento marxista e novas propostas de leitura para o socialismo, além de intensa luta ativista pelos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras europeias. Como feminista, a pensadora aliou o marxismo ao feminismo, ao falar da necessidade de incluir as mulheres na militância e tratar da questão das operárias como particular em relação à luta por direitos. "

Veja mais sobre "Rosa Luxemburgo" em: https://brasilescola.uol.com.br/biografia/rosa-luxemburgo.htm


Clara Zetkin, socialista, marxista e feminista, Clara Zetkin nasceu em Königshain-Wiederau, Alemanha, em 5 de julho de 1857. Estudou direito e começou a ter contato com movimentos operários alemães em 1874. Quatro anos depois, inicia sua militância no Partido dos Trabalhadores Socialistas (SAP), que se converte no Partido Social-democráta Alemão (SPD) em 1890. Zetkin torna-se uma das principais referência dentro da organização. Diferente de outras datas comemorativas criadas pelo comércio, o Dia Internacional da Mulher foi criado por uma socialista alemã fervorosa: Clara Zetkin, autora do livro Como nasce e morre o fascismo


Robert Kennedy político e advogado (1925-1968), de nome completo Robert Francis Kennedy, nascido nos EUA. Notabilizou-se como político e advogado, mas sobretudo por ter sido o motor da candidatura do seu irmão John Kennedy. No início da década de sessenta (1961), foi escolhido para o cargo de procurador-geral, uma função que desempenhou até 1964, data em que foi eleito senador pelo círculo de Nova Iorque. Em 1968 preparava-se para concorrer às eleições presidenciais, mas as suas intenções foram goradas ao sofrer um atentado que lhe tirou a vida, quando parecia certo como candidato democrata por Los Angeles.
Robert Kennedy foi autor de uma obra intitulada
The pursuit of justice. To seek a newer world. Nos anos sessenta fora um ativista da luta pelos direitos civis e da luta contra a Máfia. https://www.infopedia.pt/apoio/artigos/$robert-kennedy



Fotos abaixo:

Wilson Valverde na Câmara Municipal de Cataguases - sem data - acervo da família

Lídia Pereira Valverde sendo diplomada como Vereadora em 1977 na Câmara Municipal de Cataguases - acervo da família

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