Obra de Marcier pode ser vista no Educandário Dom Silvério
Localizada no prédio do Educandário Dom Silvério, na Praça Santa Rita, 270, a Sala de Memória da Congregação Carmelita da Divina Providência foi criada para oferecer testemunhos histórico-espirituais do patrimônio eclesial carmelitano e partilhar o que foi e o que é a vida na congregação. Esse pequeno museu, fundado em 1994, é constituído por um acervo religioso que reúne centenas de peças que vão do século XIX aos dias atuais.
Exposto na primeira sala à direita de quem entra, logo após a recepção, esse acervo está ou sobre mesas, ou em armários ou trancados em vitrines, com plaquetas identificadoras que dão informações concisas de cada peça. São bíblias, altares, imagens de santos, objetos de uso pessoal das carmelitas, fotos de Madre Maria das Neves, fundadora da congregação, quadros, relicários, harmônio, piano francês, um violino antigo, uma burra, entre outras peças.
Educandário
No mesmo prédio funciona, há décadas, o Educandário Dom Silvério, onde são acolhidas dezenas de meninas carentes, que recebem, além da educação formal de 1ª a quarta séries, alimentação, orientação religiosa e calor humano.
O prédio, projetado pelo arquiteto modernista Francisco Bolonha (1923-2006), é enriquecido, numa das paredes externas, com o painel Os Pássaros, obra de azulejos, do não menos renomado, Anísio Medeiros (1922-2003)
Adão e Eva
Na Sala de Memória o que mais chama a atenção é o grande mural A Criação do Mundo, do artista plástico Émeric Marcier (1916-1990). Essa obra, um afresco, ocupa toda a parede lateral do salão, numa extensão de aproximadamente 15 metros. Marcier nasceu na Romênia e veio para o Brasil por ocasião da Segunda Guerra Mundial. E por aqui ficou até seus últimos dias.
O quadro mostra o aparecimento dos seres humanos nos primórdios da humanidade. Numa representação eminentemente cubista, Adão e Eva, despidos, aparecem de mãos dadas, cobrindo as genitálias. O que se vê hoje não é o que foi pintado originalmente. Marcier havia colocado o casal com suas partes íntimas totalmente explícitas. Imagina? Em plena década de 50, no oratório das irmãs Carmelitas, Adão e Eva com os órgãos sexuais expostos? Foi um verdadeiro “deus nos acuda”. A indignação foi total. Toda a sociedade cataguasense ficou espantada com aquilo. E Marcier, irredutível, com certeza de que assim tinha sido a presença do casal no planeta, acabou se rendendo aos apelos da sociedade e alterou a obra. Sapecou de qualquer jeito umas pinceladas sobre as genitálias da discórdia, de forma artisticamente irreverente, aplacando o furor municipal. Fez isso, mas se recusou a assinar a obra. Passaram-se os anos. Na década de 60 tornou a aceitar o apelo da comunidade para dar um jeito naquelas “mal traçadas pinceladas”. Foi quando colocou o casal de mãos dadas, cobrindo suas partes íntimas. Mesmo assim não assinou a obra.
Por seu conteúdo que misturava valores religiosos, morais e estéticos, essa história deve ser avaliada fora dos limites de uma pseudo-obscenidade jocosa, provocada pela nudez de Adão e Eva. A própria situação física da obra, que já exige restauração em algumas partes, passa a ser objeto de discussão. Situações que sugerem e possibilitam diversas leituras. Uma delas, que pode e deve ser feita, é a que exime e protege o artista do histórico bate-boca inconsequente que ainda persiste.
Um fato isolado como esse não pode diminuir nossa capacidade de avaliação da totalidade da obra desse genial artista. Um pintor singular, de traços belíssimos, com pleno domínio das cores, amplo conhecimento de perspectiva, uma iluminada e correta utilização da técnica de luz e sombra, com um desenho sutil e vigoroso expresso com maestria, não pode ficar à mercê de uma crítica superficial e moralista.
Émeric Marcier não merece ficar conhecido por nós apenas por ter exposto a intimidade do ser humano na sua forma mais ingênua.
Todo esse domínio técnico, perceptível no quadro A Criação do Mundo, além de demonstrar apurada sensibilidade, coisa própria dos gênios, dá a Marcier um lugar de destaque no cenário artístico brasileiro. Tudo isso, vale ressaltar, independente de qualquer juízo de valor ou mesmo postura moral/estética que ele tenha tudo em relação à famigerada nudez paradisíaca.
Uma visita a esse pequeno museu deve fazer parte da biografia dos cataguasenses. Isso mesmo. Todos os cataguasenses deveriam visitar, nem que fosse uma só vez, o local onde está essa obra. Conhecer esse acervo é não só ter a felicidade de acesso a uma das mais importantes obras de arte brasileira, como também poder testemunhar parte da história de pessoas religiosas, totalmente voltadas para o bem-estar alheio.
A diretora da instituição, irmã Teresa Lords Venturoti, informa que esse espaço cultural estará sempre aberto ao público. “Basta tocar a campainha que nós atenderemos”, diz. Ela explica que mesmo não dispondo de museólogos ou especialistas nessa área do conhecimento, jamais será negada atenção a qualquer visitante, num esforço particular de quem luta, sem qualquer tipo de recurso financeiro, pela preservação dessa sala de memória.
Texto e Editor: Washington Magalhães, Revista TicTac, Ano I, n° 2, impressão Gráfica Lider, de fevereiro de 2010, Cataguases MG
Criação e Desenvolvimento
Welington Carvalho