Jornal: Edição Especial, número único, editor Pedro Dutra, 26.05.1958. Acervo Joana Capella
Os projetos de modernização refletem também a luta entre os dois chefes locais - Jose Inácio Peixoto X Pedro Dutra. Todos eles foram desenvolvidos numa atmosfera de intensa disputa política, gerando acirradas oposições.
A demolição dos cortiços comandada por Pedro Dutra em 1931, por exemplo, provocou muitas insatisfações, sendo explorado politicamente pelos seus adversários. O caso foi parar nos tribunais e o proprietário dos casebres alegou perseguição política e afirmou sofrer hostilidades por parte do prefeito, por ser “político contrário”. A exigência do prefeito em construir passeios públicos também gerou descontentamentos por parte da oposição. Pedro Dutra fez baixar um edital intimando diversos proprietários a concertarem seus passeios no prazo de quinze dias, sob pena da prefeitura fazer os passeios e inscrever o débito dos proprietários no livro da dívida ativa, acrescido de uma multa de cem mil réis.
Mais uma vez os proprietários “prejudicados” acionaram a justiça. É o caso de Aquiles Henrique Felipe, que moveu uma ação possessória contra a prefeitura, alegando violação da posse privada, quando esta construiu um passeio em frente ao seu estabelecimento comercial. (Jornal Cataguases, 10.07.1932)
Segundo Pedro Dutra, tratava-se de um grupo de indivíduos descontentes por ter perdido as posições políticas que até então desfrutavam. Por isso, procuravam criar embargos a ação do prefeito, por todos os meios que dispunham. “Até sobre cortes de árvores e de bambus, à margem das estradas de rodagem, sobre calçamentos de ruas, passeios etc, se ajuízam Interditos”. (Processo Cível. Ação Possessória, 1932. Autor: Irmãos Peixoto. P. 181. CDH)
Podemos ver claramente, através desses casos, a disputa política ultrapassando o campo político eleitoral e estendendo-se à esfera administrativa e urbanística. Devido a essa disputa, muitos projetos foram, não só abandonados pela oposição, como também destruídos. Outros não foram concretizados por questões políticas.
A construção da Vila Operária é um caso bem emblemático. Em 1931, Pedro Dutra apresentou a proposta e tentou efetivá-la. O terreno foi adquirido e chegou-se a lançar a pedra fundamental. Contudo, o projeto não foi para frente e sofreu inúmeras críticas da oposição. No entanto, a oposição construiu vilas operárias: a Companhia Industrial Cataguases, a Indústria Irmãos Peixoto e Manufatora, construíram casas para seus empregados.
Neste caso, a luta política apresenta um resultado ambíguo: por um lado, há a destruição do projeto do adversário; por outro lado, a disputa pelo poder incentivava a oposição a desenvolver projetos afins.
João Inácio Peixoto, quando prefeito em 1947, inicia a construção de casas populares e, coincidência ou não, nas proximidades da área onde seria construída a Vila Operária de Pedro Dutra, ou seja, praticamente no mesmo espaço.
Pedro Dutra tinha uma atenção especial com a urbanização da Vila Tereza, onde pretendia criar um “bairro chique”. Pois foi exatamente na Vila Tereza que foram construídas pelos Peixoto, a Companhia Industrial Cataguases, as casas operárias da Companhia e uma pracinha em homenagem a José Inácio Peixoto. Em outras palavras: os Peixoto abandonaram o projeto original do adversário, Pedro Dutra, e desenvolveram no mesmo espaço, o seu próprio projeto urbanístico.
Podemos encontrar outros exemplos de disputa pelo espaço entre os dois chefes políticos. A avenida Astolfo Dutra, uma das principais artérias da cidade, recebeu esse nome em homenagem ao pai de Pedro Dutra e tem no seu início um busto do homenageado. Nela foi construído o primeiro grupo escolar da cidade, denominado “Coronel Vieira”. (Coronel Vieira, tido como fundador do município é tio-avô de Pedro Dutra). Sua construção, em 1912, deveu-se à influência política de Astolfo Dutra, então deputado federal. Pois bem, nesta mesma avenida foram construídas, nas décadas de 40 e 50, residências em estilo arquitetônico moderno, inclusive de membros da família Peixoto.
Temos assim, as duas famílias disputando o mesmo espaço e marcando seu território numa atitude contundente e desafiadora. Outros espaços públicos também entraram nessa disputa: o antigo cinema, em estilo eclético, foi substituído por um novo em estilo moderno; a Igreja Matriz, em estilo neogótico, foi substituída por uma nova, também em estilo moderno.
Não bastava construir novos espaços, era necessário destruir o antigo. Era necessário destruir os espaços que se encontravam, de uma forma ou de outra, vinculados à administração dos Resende-Dutra e substituí-los por novos espaços que trouxessem consigo a marca do poder adversário. Essa disputa aparece de forma mais contundente nas denominações de ruas e logradouros públicos. Pedro Dutra, quando prefeito, sancionou um decreto, nº 17, em 30 de agosto de 1931, determinando como deveriam ser feitas as inscrições nas placas de logradouros públicos. Segundo o decreto, as placas só deveriam ligar a nomes de pessoas que tivessem realmente contribuído para o progresso do município e o público deveria ter conhecimento da razão da homenagem. Na placa deveria constar: avenida, praça, rua, travessia; nome do homenageado; data de nascimento e falecimento (se caso); razão da homenagem.
Na época, Pedro Dutra nomeou várias ruas homenageando cataguasenses e políticos envolvidos na “Revolução de 30”.
Na Vila Tereza, por exemplo, abriu-se uma avenida com nome de “Avenida João Pessoa” e inscreveu na placa o motivo: “foi o grande deflagrador da Revolução Brasileira”. Ainda na Vila Tereza foi aberta outra avenida com o nome de “Avenida Antônio Carlos”.
Em 1947, com a eleição de João Inácio Peixoto para prefeito, os Peixoto reassumem o poder político no município. Inicia-se, a partir daí, uma verdadeira guerra pela posse da memória, expressa nos nomes de ruas, edifícios públicos e monumentos.
Numa ação popular movida por Pedro Dutra e outros membros da família contra o prefeito João Peixoto, Dutra acusa o prefeito de mutilar a avenida Astolfo Dutra, encurtando-a: a partir da avenida Melo Viana, a avenida passaria a denominar-se avenida Coronel Antônio Augusto. Essa medida encontra-se no decreto nº 122, assinado pelo prefeito em 11 de novembro de 1948. Segundo Pedro Dutra, essa mudança do nome era simplesmente para um de seus irmãos não morar na avenida Astolfo Dutra. (Processo Cível 3º ofício. Ação Popular, 1962. P. 55. CDH)
Num outro decreto, nº 356 de 16 de outubro de 1959, o prefeito João Peixoto, muda o nome do logradouro para Avenida Coronel João Duarte e transfere para uma rua a ser aberta no bairro Granjaria, o nome de Astolfo Dutra. É este ato que leva Pedro Dutra e demais membros da família a moverem a ação popular contra o prefeito. Segundo o autor da ação, o decreto tem por objetivo tirar o mérito e o prestígio de Astolfo Dutra. Advém do ódio que o prefeito alimenta contra ele e sua família e, para ferir seu adversário político, não vacilou em aviltar a memória do grande cataguasense. A avenida foi idealizada e aberta graças a ação de seu patrono e sua influência junto ao governador do estado, quando Agente Executivo em 1897 e agora o prefeito quer atribuir essa obra a outro, depreciando os feitos de Astolfo Dutra e difamando sua memória. “Não pode o chefe do executivo municipal, por mero espírito de emulação política, por vindicta privada, ou qualquer sentimento inferior, usar do cargo que lhe foi outorgado pelo povo, com o propósito de tentar vilipendiar os seus desafetos e menosprezar a memória dos mortos.” (Processo Cível 3º ofício. Ação Popular, 1962. P.93, CDH).
Pedro Dutra intimida o prefeito a repor nos devidos lugares, as placas em bronze, com a denominação da avenida e todos os dizeres nela gravados, num prazo de quinze dias. (O nome da Avenida Astolfo Dutra foi aprovado pela Lei Municipal nº 267 de 28.07.1920 por ocasião da sua morte).
Depois de muitas brigas nos tribunais, o nome da avenida foi mantido, mas as placas, com os dizeres gravados, não foram recolocadas.
Fato semelhante ocorreu com o monumento a Guido Marlière. Em 1958, foi erigida, por iniciativa de Pedro Dutra, uma estátua em homenagem ao fundador do povoado que deu origem à cidade. A estátua, inaugurada por Pedro Dutra e demais autoridades, com toda pompa e solenidade, situava-se na Praça Santa Rita, local onde nasceu a cidade e de onde Guido Marlière traçou as primeiras ruas. Em seu pedestal, encontravam-se inscrições gravadas em bronze nas quatro faces: na frente, a data da inauguração, 26 de maio de 1958, e os dizeres “esta estátua foi erigida por subscrição popular e por iniciativa de Pedro Dutra” (Ação Popular. 1962. P.7) no lado direito, o nome do homenageado e alguns dados biográficos; atrás, algumas de suas obras e no lado esquerdo, um trecho do discurso proferido por Pedro Dutra.
Note-se que em 1958, a chefia política local estava com Pedro Dutra. Em 1959, quando João Inácio Peixoto retorna ao cargo de prefeito, troca a estátua de lugar, levando-a para a então chamada Avenida Brasil. Além disso, retirou as placas com as inscrições que se encontravam em seu pedestal. Este ato do prefeito gerou mais uma ação popular movida por Pedro Dutra. Este reclama que o prefeito mudou a estátua para um lugar inferior, de menor movimento, só para diminuir a homenagem. Mais uma vez afirma que este ato advém do ódio que o prefeito alimenta conta ele e seus parentes. Não admite que seu nome “figure em qualquer ato, que apareça em qualquer solenidade, ou que figure ligado a qualquer fato que diga respeito à vida ou ao progresso do município” (Ação Popular. 1962. P. 9) e como há certos fatos da história do município que estão ligados a nomes de parentes seus, o prefeito vem lançando mão de todos os meios para tentar apagar esses feitos.
Pedro Dutra reclama ainda que o prefeito não admite que, nem mesmo em atos oficiais, seu nome seja publicado no “Cataguases”, órgão oficial dos poderes municipais. No processo, Pedro Dutra exige que a estátua seja recolocada no lugar de origem, com todas as placas e inscrições, o que não aconteceu.
A luta pela memória aparece em outro espaço público: o grupo escolar situado na Vila Tereza. Este grupo foi criado em 1945, pelo então Governador Benedito Valadares, que ordenou que o Grupo Escolar Flávia Dutra, instalado no prédio do Grupo Escolar Guido Marlière, fosse para lá transferido. O prefeito João Peixoto declarou que o grupo não podia funcionar naquele prédio, pois desejava que ali fosse instalado o grupo Nísio Batista e mandou escrever o nome na frente do prédio. Pedro Dutra determinou que fosse escrito no frontispício do prédio “Grupo Escolar Flávia Dutra”. O prefeito mandou retirar o nome e colocar “Grupo Escolar Nísio Batista”. Era o início de mais uma briga entre Pedro Dutra e o prefeito João Inácio Peixoto.
Pedro Dutra alega que o motivo da troca do nome era única e exclusivamente pelo fato de ser Flávia Dutra sua esposa e por ele ser chefe do PSD e adversário político do prefeito. Após muitas trocas de placas, o nome do “Grupo Escolar Flávia Dutra” foi mantido.
O homem cria “lugares de memória”: bibliotecas, arquivos, museus, estátuas, arquitetura, monumentos, comemorações. Esses lugares têm a função de “parar o tempo”, “bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte.” Permitem reter o passado, trazendo-o para o presente. Sua função é guardar as marcas do passado. Assim, placas com nomes de chefes políticos em ruas e avenidas, nomes de escolas, estátuas, são muito mais do que simples homenagens. Além de comemorar, perpetuam a lembrança, não deixando o indivíduo cair no esquecimento, pelo contrário, torna-o eterno. Ser sempre lembrado, estar sempre presente na memória coletiva, é algo muito caro aos políticos. É preciso estar lembrando constantemente à população quem foi e o que fez. Não só por uma questão de identidade, mas de poder.
No caso de Cataguases, fica claro, através da disputa pelos nomes de avenidas, escolas e monumentos, a luta entre as duas famílias rivais, pelo controle da memória. Em sua ação popular, Pedro Dutra denuncia: “no município de Cataguases não há uma só obra pública (...) feita por qualquer membro da família Peixoto. A cidade e o município de Cataguases não lhe devem o menor favor público (...) todas as obras ou serviços públicos que existem nesta cidade ou município, ou foram feitas por parentes do Pedro Dutra, por seu pai ou por ele...” (Ação Popular, 1961. P.4. CDH)
Numa disputa política a luta pelo controle da memória coletiva é uma luta pela legitimação do poder. Ao lutarem para permanecerem vivas na memória do povo, as duas famílias rivais – Dutra e Peixoto – estão lutando também para legitimarem o seu poder. E neste ponto, a preocupação com a memória difere: os Dutra, por estarem ligados à família fundadora do município, os Resende, precisam apenas reforçar essa lembrança, evitando que ela caia no esquecimento. Foi esse fato que autorizou Pedro Dutra a dizer que tudo que há no município foi feito por ele e seus parentes. Fica muito claro em sua fala, o discurso da legitimação do poder, alicerçado na fundação. É a família fundadora do município, isso legitima seu poder. O que é preciso, é não deixar isso cair no esquecimento. É criar “lugares” para manter esse passado vivo na memória do povo.
Em suas acusações, Pedro Dutra reclama do fato dos Peixoto quererem “apagar” seu nome da história do município. Neste caso isso se fazia necessário, pois numa disputa política pela memória, “apagar”, “destruir”, é tão importante quanto criar novos lugares de memória. Para os Peixoto alicerçarem seu poder político era necessário destruir uma fundação, destruindo sua memória e “criar” outra fundação, para assim legitimar seu poder.
A luta pela posse e controle da memória, é acima de tudo, uma luta política pela legitimação do poder. Além disso, os Peixoto incorporaram o discurso da “modernidade”. Se auto representavam como “modernos”, como “homens do progresso”. Introduziram na cidade a arquitetura moderna, que se tornou um de seus principais “lugares de memória”. Tudo isso contribui para reforçar a imagem dos Peixoto como fundadores da modernidade em Cataguases, além de reaquecer constantemente a memória coletiva, evitando que esse mito caia no esquecimento.
Sabemos que uma característica fundamental da modernidade é a ruptura e a destruição da tradição. A modernidade não se contenta em construir um novo espaço, ela precisa destruir o antigo para se afirmar. Destruir para construir de novo. Não é simplesmente um lugar que está sendo remodelado. É mais do que isso: é uma memória que está sendo destruída e uma outra sendo implantada. É o poder político instrumentalizando a memória coletiva para se impor e legitimar.
Fotos: Cartão Postal: Praça Santa Rita, sem autor, data aproximada 1958. Domínio Público - Acervo Joana Capella
Fonte: A disputa de grupos familiares pelo poder local na cidade de Cataguases – práticas, representação e memória
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, pela Professora e Mestre em História, Odete Valverde Oliveira Almeida.
Criação e Desenvolvimento
Welington Carvalho