A 2ª prisão de Ronaldo Werneck

“Minas, esse espinho que não consigo arrancar do meu coração” diz um angustiado Lúcio Cardoso a páginas tantas de seu Diário, pleno de anotações transbordantes de paixão por Minas e paixão contra Minas. Lúcio foi uma das paixões de minha adolescência. Literárias, por favor. O primeiro contato com seu romance Crônica da Casa Assassinada, feito ainda em Cataguases, no início dos anos 60, deixou-me literalmente fascinado. A saga dos Meneses habitou por anos minha memória, a Chácara exalando mofo e decadência, fruto apodrecido num pomar do passado – um subsolo onde submerge a família mineira em pleno estado de decomposição.


Amigo de Rosário Fusco e de Francisco Inácio Peixoto, em cuja casa ficava hospedado, Lúcio Cardoso foi durante um tempo habitué em Cataguases, onde escreveu grande parte da Crônica da Casa Assassinada. Quanto a isso, naturalmente, há controvérsias. Tantas que durante muitos anos eu e o Joaquim Branco, outro “fascinado” pelo romance, acreditávamos que a Chácara dos Meneses realmente existiu – e aqui em Cataguases. Claro: no bairro dos Meneses, esse que está ali até hoje, entre o Senai, o Aexas, o Recanto’s e a Faculdade. O mesmo já não acha Paulo Cezar Saraceni, que já realizou dois filmes baseados em obras de Lúcio Cardoso, Porto das Caixas e a própria Crônica, mas nunca fez sequer uma de suas locações em Cataguases. Estive há pouco com Saraceni em Ubá. Ali, sob o olhar do grande Mário Carneiro, seu diretor de arte, rodavam-se algumas cenas de O Viajante, o terceiro longa de Saraceni baseado em Lúcio. Segundo André Mauro, seu assistente de direção, estava prevista uma filmagem na ponte de Aracati. Mas em Cataguases, que é bom... neca na boneca! Quantas controvérsias na paisagem vista de Minas!


Não conheci Lúcio Cardoso – “não o pratiquei”, como dizia o Fusco –, a não ser através do que sobre ele me contava meu amigo Luiz Carlos Lacerda, o poeta e também cineasta conhecido como “Bigode”, outro de seus fãs do “rol dos incondicionais”. Bigode fazia um documentário com/sobre ele assim que cheguei ao Rio, aí por volta de 1965/66, e num só entusiasmo falava/citava/transpirava Lúcio Cardoso. Anos mais tarde, Bigode filmaria em Parati o belo e denso Mãos Vazias, baseado na obra de Lúcio, que daria a Leila Diniz o prêmio de melhor atriz no Festival Internacional de Adelaide, na Austrália, em junho de 1972. De Adelaide, Bigode e Leila foram para Bangcoc. Dali, ele voou para Katmandu e Leila para Roma, via Nova Délhi: um voo que na verdade tinha a morte como destino.


Meses antes no Rio, em janeiro daquele ano, nas vésperas de meu casamento, eu e Adriana fomos presos pelo 1º Exército e trancafiados num xilindró do DOI-Codi, na Barão de Mesquita, ali mesmo onde a tortura rolava feio e forte. Nada tínhamos com o peixe, muito menos com a carne. E por nada fomos presos, como, aliás, todo o mundo naqueles tempos de pra frente Brasil, Médici, ame-o ou deixe-o & outras bobagens do mesmo quilate, inclusive toda a cachorrada. Na época, Tarso de Castro, que eu conhecia do Pasquim, estava dirigindo um espetáculo que procurava retomar o teatro rebolado, produzido pelo Rodrigo Farias Lima, com Leila Diniz posando de vedete. Eles acabaram sabendo de nossa prisão, acredito que através do Rodrigo que era mais chegado à gente. Não sei bem como, os três, Tarso, Leila e Rodrigo “mexeram os pauzinhos” – e mexeram bem bonitinho, pois os jovens noivos puderam estar na igreja no dia do casório, sem que ninguém soubesse do quiproquó.


O susto durou na verdade até meia hora antes da cerimônia, quando soltaram o padrinho do casal, o nosso querido Carlos Sérgio Bittencourt, que por motivos parecidos também “entrara numa fria” e estava trancafiado nos porões do mesmo DOI-Codi. Claro, depois do tradicional chope na casa dos pais da noiva, a festa foi esticada para a boate onde Leila estrelava Vem de ré que eu estou de primeira e recebia os noivos como seus convidados de honra, ao lado do Sérgio Bittencourt. Não o Carlos, mas o próprio Sérgio Bittencourt, ali Naquela Mesa. Que diabos estava o Sérgio Bittencourt fazendo no meu casamento? Acho que a Adriana andou trabalhando com ele, nos tempos em que estava na Revista Manchete ou no Programa do Chacrinha, onde ela participava como jurada. Há controvérsias. Lembro que o Sérgio deu uma nota do casório em sua coluna do Globo. Quanto à Leila, nem é preciso falar do festival de “carinhosas sacanagens” que ela aprontou naquela noite primeira, de núpcias e também de ré. Leila, outra das paixões do Bigode. E de todos nós.


Ponto e volto pro Lúcio Cardoso. Sua imagem surgiria também mais tarde, já na virada dos anos 60, quando passei a frequentar a casa do Rosário Fusco em Cataguases. Eram folclóricas e inesperadas repercussões vindas na voz meio embargada de Fusco, seu grande amigo: “um dia ele me apareceu de madrugada e devidamente bêbado. Na época, eu morava em Copacabana, num segundo andar, de frente pra rua Siqueira Campos. Lúcio berrou lá fora e cheguei à janela. Tinha um lotação vazio, encostado no meio-fio: ‘Fusco, olha o que eu comprei! Que belo lotação, né?! Tô indo pra São João do Meriti, dar uma volta. Vamos?’.


“Claro que não fui”, me disse o imprevisível Fusco, ele que já havia comprado um bonde e circulado pela madrugada de Copacabana com um bando de amigos: “estava escrevendo e, a bem da verdade, São João do Meriti não fazia parte do meu roteiro, pelo menos aquela noite. Três dias depois, nova madrugada, nova gritaria na calçada. Lúcio voltara de San Juan del Merity. Bêbado, é claro, ou não seria ele, a roupa toda esfarrapada, um mendigo de mendigo nenhum botar defeito. Mandei subir. Soluçando, contou que haviam lhe coberto de porrada e roubado o seu lotação, mas que fora tudo muito divertido. Viera a pé de San Juan: muito divertente. ‘O que vale é o esforço’ dizia ele, numa das frases de que eu mais gostava. O Lúcio viveu intensamente, e às vezes me dá um saudade danada dele!”.


Meu Deus, como gostaria que permanecessem as fixações de nossa adolescência! Relido agora, o romance do Lúcio já não é o mesmo que tanto me fascinara. Sua Crônica está plena de imperfeições. A dicção dos personagens nos vários depoimentos é por demais empostada e soa quase sempre falsa. Por sua vez, a narrativa em contraponto ­– que parecia novidade na época, apesar de “chupada” de Aldous Huxley – envelheceu como a própria Chácara dos Meneses. Não existe qualquer verossimilhança na fala dos personagens, o que não é nenhum pecado capital, mas não deixa de ser incompreensível num romancista de sua estirpe e estatura.


Pior de tudo – perdão, Rosário Fusco; perdão, Paulo Cezar Saraceni; perdão, meu caro Luiz Carlos “Bigode” Lacerda; perdão, Cristina Prates; perdão Consuelo Albergaria; e, principalmente, perdão, Joaquim Branco: o Lúcio escrevia terrivelmente mal, mal de doer. A Crônica é um romance intenso, com um plot diabólico, de grande dramaticidade. Mas que se esgarça no gran falar de seus personagens, na falsidade de floreios vocabulares incabíveis em criaturas socadas no interior de Minas. No fundo, as narrativas são teatrais no mau sentido, pois delas Lúcio não se distancia. Por isso, parecem falsas. Que pena: é duro falar assim da Crônica, nosso velho mito. O que salva Lúcio Cardoso é que sempre há controvérsias.


Jornal do Marcos

Cataguases, 24.05.98

in Há Controvérsias 1

São Paulo, 2009


Fonte: Livro "Há Controvérsias 1", Ronaldo Werneck, Editora Artepaubrasil, São Paulo, 2009.


Foto: Ronaldo Werneck - cedida pelo próprio autor, 2009



Redatora Chefe: Karla Valverde

 


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