Manoel Peixoto sobre Pedro Dutra

Em se tratando de uma disputa política e considerando o campo das representações como uma arena privilegiada dessa disputa, Manoel Peixoto também representa seu adversário como o oposto do que se auto representa.


“Pedro Dutra reúne todos os vícios e defeitos de um homem público: ditador, autoritário, ambicioso, impatriótico, demagogo, falso, mentiroso, embromador, enganador, caluniador, ladrão, metido a valente, coronel, descontrolado e louco. É o modelo de como não deve ser um político e administrador. Dono de uma imaginação doentia, saneador da desordem e da anarquia, espalha intrigas e ódios. Inimigo dos pobres, pôs abaixo casas que abrigavam gente humilde, deixando várias famílias desabrigadas e sem teto. Autoritário, ameaça e amedronta seus correligionários e intimida seus eleitores. Não respeita os direitos individuais, nem de propriedade. Exerce perseguição política, usa da violência como um velho oligarca. Não respeita a liberdade de opinião e quer que todos ajam sob a sua batuta. Pratica atos ilegais, passa por cima da lei e do direito, exerce justiça pelas suas próprias mãos. Vive às custas do erário público e nada faz. Usa a lei para satisfazer interesses pessoais e esbanja o dinheiro público sem benefício para o município. Diz ser amigo dos trabalhadores, mas na verdade espalha a anarquia e a desordem, lançando mão da intriga para indispor a ordeira classe operária contra os patrões. Infiltra na classe trabalhadora o vírus peçonhento da revolta e do despeito, “ato do comunismo”. (Jornal Cataguases, 29.11.1936)


“Ao invés do trabalho, que honra e dignifica, transformava o trabalhador num mendigo, dando-lhe esmola que humilha, fazendo-lhes favores ilícitos e vexatórios com “dinheiro tirado criminosamente dos cofres públicos”. (Jornal Cataguases, 29.11.1936)

“Nada fazia pela massa sofredora, conservando-se inerte e impassível diante dos padecimentos alheios. Enquanto não derem publicamente uma demonstração igual à dos donos das indústrias, não retirarem seus dinheiros dos bancos para empregá-los em qualquer indústria que venha a acionar o desenvolvimento e a grandeza de Cataguases, os falsos defensores do nosso operariado ficam proibidos de abrir a boca. (Jornal Cataguases, 29.11.1936)


Manoel Peixoto retrata seu adversário como símbolo do atraso, tanto econômico quanto político.


“Representa a “velha politicagem”, utiliza sempre dos mesmos discursos tentando embromar o povo. Lançou o município numa luta partidária que não girava em torno de ideias, mas de desejo de mando, gerando ódios e inimizades que prejudicam o interesse coletivo. Nada fez de notável no município, pelo contrário, “desgovernou” por longos quatro anos. Foi um “colapso na marcha para o progresso do município”. As construções paralisaram, a fome e a miséria imperavam nos lares sem trabalho. Calamitosos tempos, mas que felizmente, “graças às forças construtoras do bem, esse colapso passou, desvaneceu-se, eclipsou-se nas brumas do passado.” (Jornal Cataguases, 14.06.1936)


“Agora, afastado do poder, procura lançar a confusão e a discórdia e manter aceso o facho das rivalidades estéreis e improdutivas. Vem por todos os meios tentando perturbar o ambiente de tranquilidade em que vivemos. Vive buscando motivo para entravar a marcha do nosso progresso, tentando ressuscitar um passado morto”.


Ao representar o seu adversário como demagogo e ultrapassado, Manoel Peixoto, procurava ridicularizá-lo, satirizando sua figura e associando sua imagem ao “velho”, ao “arcaico”. Pedro Dutra é retratado como o político da “Velha República” e representa a velha oligarquia com tudo que há de ruim: caudilhismo, violência, autoritarismo, demagogia... é um político “carcomido”, parado no tempo.
 

“No entanto, os tempos são outros, por isso o povo não acredita mais em suas promessas. Está se tornando uma figura ridícula, repetindo sempre o mesmo discurso, que já não convence mais por ser ultrapassado”.


Manoel Peixoto representa o “novo”. É um novo perfil de homem na política: “uma figura emergiu no tumultuar dos acontecimentos: Manoel Peixoto desconhecia a mentira, a deslealdade, a intriga, a rasteira dos meios políticos.” (Jornal Cataguases, 27.09.1936)


Como um novo homem na política não conhecia os velhos vícios e defeitos. É a pureza e o frescor do novo, que ainda é imaculado, sem manchas, sem velhos rancores. Não é político por profissão, é empresário e, como tal, quer o progresso e o bem da cidade. Seu discurso sempre opõe o novo ao velho, o progresso ao atraso.


Cataguases, quem te viu quem te vê. Voltarás a ser a princesa da Mata em curto espaço de tempo. O colapso passou... o sonho mau que tiveste: um pesadelo. Todos precisam colaborar para reerguer o município que ficou esfacelado, endividado, anarquizado, empobrecido. Novo horizonte surgiu, recomeça o ritmo de atividades e trabalho que andava arredio... era a fome que rondava os lares dos operários, agora é a abastança que alegra os tetos dos pobres. Que diferença!” (Jornal Cataguases, 22.11.1936)


Nesse discurso há um embate característico da “modernidade” com o passado, tido como velho, ultrapassado e que não tem nada para nos ensinar e que deve, portanto, ser esquecido. O homem novo está com os olhos voltados para o futuro. É lá que está o progresso, a vida civilizada, o bem viver e Manoel Peixoto está realizando este futuro agora. Suas indústrias estão proporcionando o progresso e acelerando o desenvolvimento, acelerando a marcha da cidade rumo ao seu inevitável futuro brilhante e promissor.


Manoel Peixoto procurava ainda descontruir o discurso de seu adversário, produzindo um contradiscurso, ou melhor, uma contra representação. Assim, como Pedro Dutra se representava como democrata, liberal, tolerante e protetor dos pobres e trabalhadores, Manoel Peixoto constrói uma contra representação, retratando-o como autoritário, ditador e inimigo dos pobres.

 

Para rebater as acusações de seu adversário, também produz um contradiscurso. Por exemplo: Como Pedro Dutra enfatiza a exploração dos operários por parte dos industriais, Manoel Peixoto cria e reforça uma imagem de “harmonia” entre as classes sociais. Todos trabalhando lado a lado, unidos e felizes pelo progresso da cidade. É a luta política sendo travada no campo das representações.


Há muita coisa em comum na imagem que cada um cria de si mesmo e do outro. Ambos se representam como democratas, tolerantes, honestos, trabalhadores, justos, bondosos, dignos e representam seu adversário como o oposto. Todavia, apesar das semelhanças, podemos detectar algumas especificidades nos dois discursos. A característica mais marcante no discurso de Pedro Dutra é a luta entre o público e o privado. Pedro Dutra se auto representa como defensor dos interesses públicos e do patrimônio municipal. É o grande guardião dos bens da coletividade.


Já o “carro chefe” do discurso de Manoel Peixoto é a imagem do progresso. Ele e seus irmãos são os grandes responsáveis pelo progresso da cidade. Industriais, promovem o emprego e o desenvolvimento do município. Um outro aspecto que nos chama a atenção nos discursos dos dois chefes é a luta entre “o bem e o mal”. Cada um se auto representa como a “força do bem” e representa seu adversário como a “força do mal”. É a democracia contra a ditadura, a tolerância contra o autoritarismo, a justiça contra os abusos do poder, a lealdade contra a traição, a lei contra os negócios escusos, o bem coletivo contra o egoísmo individual, a verdade contra a mentira, o progresso contra o atraso, a bondade contra a maldade.


A disputa no campo das representações é a luta do bem contra o mal. Isso repercute de maneira muito forte no imaginário coletivo. A evocação de imagens do sagrado, como bem e mal e de valores universais, como justiça, fraternidade, igualdade, liberdade, atinge diretamente o coração e a sensibilidade das pessoas, possibilitando aos criadores das representações – no nosso caso, os dois chefes políticos em disputa – conduzir a população para o fim almejado, orientado seus sentimentos e emoções.  Aliás, é exatamente aí que reside a força das representações e do imaginário.

O controle do imaginário e de suas representações permite aos donos do poder influenciar o comportamento das multidões, modelando-as de acordo com os resultados desejados, capturar e canalizar suas energias, orientar seus medos, desejos e esperanças e arrastar “os indivíduos para uma ação comum.” É justamente essa sua capacidade de mobilização que atrai o poder. Por isso o imaginário é objeto de disputa política.


A exaltação do chefe através de representações engrandecedoras e por outro lado, a desvalorização do adversário, através de representações negativas e deslegitimadas. Ou seja, para combater o adversário, além de representá-lo com imagens “negativas”, é necessário colocar em “xeque” a sua legitimidade, questioná-la, invalidá-la para corroer a base sustentatória de seu poder, construir uma contra representação, uma outra legitimidade.


É o que podemos verificar nos discursos de Pedro Dutra e Manoel Peixoto, quando se dá o enfrentamento político no campo das representações. 


Foto: Fábrica de Tecidos Manoel Ignácio Peixoto & Filhos -  Coleção Pedro Dutra. Sem autor, 07.07.1932. Domínio Público. Acervo de Joana Capella


Fonte: A disputa de grupos familiares pelo poder local na cidade de Cataguases – práticas, representação e memória

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, pela Professora e Mestre em História, Odete Valverde Oliveira Almeida.

 



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